Pra começo de conversa, quero dizer
que você nunca vai nos deixar de verdade, já que está sempre presente. Seja nos
papos das reuniões familiares que, aliás, continuam “daquele” mesmo jeito; nos
nossos pensamentos; nas piadas que lembramos que você contava; ou nas coisas
engraçadas que você dizia e que sempre repetimos. Você foi sei lá pra onde,
mas apesar da saudade que sentimos de você e da sua presença, mesmo de longe,
ainda nos diverte com a sua irreverência.
Não sei por que tenho sonhado tanto
com você, meu tio. Talvez, porque eu esteja numa fase sensível e você tenha
sido uma pessoa muito importante na minha vida. Talvez, porque você queira me
dizer alguma coisa e resolveu me trolar, porque nunca diz. Ou talvez, você só
queira me “encher o saco” mesmo, como sempre fez.
Quem te conheceu sabe bem como você foi.
Mas, pra quem não teve o privilégio da sua convivência, vou contar um pouquinho
como você era, na minha perspectiva. Como era o Betão, ou o tio Roberto. Eu nunca tive um jeito só de te chamar.
Você era um sujeito diferente e muito
autentico. Nada preocupado com convenções sociais e nem um pouco preocupado
com aparências, com nenhum tipo de aparência, aliás. Andava com as calças
caindo e sempre abotoava a camisa errado, sobrando um botão, para o pavor da
Marildinha, que vivia tentando te “ajeitar”. Você gostava das coisas simples e
também preferia as pessoas simples. Era impaciente e detestava falar ao
telefone. Gostava muito de apreciar a natureza (posso até ver você lá no fundo
da chácara, dizendo como era lindo tudo aquilo). Você adorava os animais. E
gostava de bater papo (só até te dar sono) e de tomar uma no Toninho, não o
famoso, aquele da esquina da sua casa. Também tocava acordeon e a música que mais lembro de você tocando é Ronda. Mas, também, só tocava quando queria, apesar de toda insistência da família. A única que o convencia era a Vó Helena. Nossa! Falando nisso, ela deve estar te dando trabalho aí.
Você tinha um rigor de caráter impressionante,
que deveria ser natural, mas é muito escasso nos dias de hoje. Esse rigor
ensinou e cobrava de todos nós, seus sobrinhos, seus filhos e todos que
conviviam com você. E posso te dizer uma coisa, tio? Não sabe como isso faz
diferença na nossa vida.
Apesar de respeitar muito as pessoas, quando
alguma coisa não lhe agradava e se tinha o mínimo (o mínimo mesmo) de
intimidade, mandava logo um “vai tomar no cu, seu corninho sem vergonha” e
isso, pra você, não era desrespeito, e nem pra quem ouvia, quando vinha de
você.
No meu primeiro emprego de verdade, lá
no Buffet, quando eu tinha 14 anos, você era o meu chefe. Lá aprendi muitas
coisas que até hoje trago pra vida. Além dos meus pais, você foi um grande
exemplo de responsabilidade e honestidade. Aprendi a respeitar horário,
respeitar tratos e o mais importante, respeitar pessoas, todas elas. Lá também
tivemos nossas discussões, que não duravam nada e que a Dona Gera dava logo um
jeito de botar panos quentes. Mas essas discussões só aconteciam, em função
dos papeis que desempenhávamos no trabalho e na vida. Você sempre cobrou muito
compromisso e responsabilidade e, às vezes, daquele seu jeito meio torto. E eu,
apesar de todo respeito que sempre tive por você, estava aprendendo e nunca
soube ficar quieta sobre o que eu penso. Isso tudo também me fez crescer como
pessoa e como profissional.
Foi você quem me emprestou, para ler, quando eu
tinha uns 15 anos, aquele livro do Malba Taham, "O homem que calculava". Lembro
claramente de alguns capítulos, como o dos 35 camelos; o das 90 maçãs; as
curiosidades numéricas do Alcorão... Enfim, foi um livro que me instigou, me
marcou, que li muitas vezes depois e que ajudou a construir o meu gosto pela
leitura, já incentivado pelo meu pai. A partir dali gostei muito mais de
leitura, de matemática e de possibilidades.
Betão, sabe o que você foi pra mim? Um
exemplo de irreverência e coerência. Um tio de um humor que variava muito e
assim mesmo era divertidíssimo. Um homem generoso e muito simples. Foi mais um
exemplo de como levar a vida reta. Um tio que me deu muitas caronas pros shows
de rock e, às vezes, entrava junto, pra “conhecer” o ambiente. Um tio que quando eu liguei, foi me buscar correndo em Águas de São Pedro, quando me meti num estágio furado
e estava quase “em depressão”. Enfim, um
tio com quem eu sempre contei.
Betão era um homem com espírito “anarquista,
graças a Deus”. E nem era advindo da Itália, muito menos da família da Zélia Gatai. Na
verdade, isso nada tem a ver com a obra. Era só um filho de espanhol, turrão,
contestador do sistema, um espírito anarquista que acreditava em Deus (quem
disse que não dá?), mas do seu jeito. Exemplo disso, é que quando resolvia ir
à missa, preferia ir a Capela do Santa Fé, um bairro muito pobre de Londrina, do
que ir à Igreja onde a família toda frequentava. Lá, no Santa Fé, ajudava na
creche, nas festas populares para angariar fundos, conversava com as pessoas,
enfim, lá, sabia que poderia fazer alguma diferença, aí fazia sentido pra ele.
Tio Roberto, as coisas por aqui andam
quentes, o povo foi em massa pras ruas, mas não vou esquentar a sua cabeça com
isso. Só pra ter uma idéia, vou emprestar uma música do Chico, de quem você
gostava e que pode ilustrar nossos dias: “... Aqui na terra tão
jogando futebol. Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll. Uns dias chove,
noutros dias bate o sol. Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá
preta. Muita mutreta pra levar a situação. Que a gente vai levando de teimoso e
de pirraça. E a gente vai tomando que também sem a cachaça. Ninguém segura esse
rojão... Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta. É pirueta
pra cavar o ganha-pão. Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro. E a
gente vai fumando que, também, sem um cigarro. Ninguém segura esse rojão...”.
Pois é!
Tio, tá tudo “assim”, mas você já pode
ficar tranqüilo. Você deixou, pra nós, muitas coisas, muitos exemplos, muitas
histórias, muitas lembranças. Deixou também a Marildinha, sua companheira de tantos
anos e uma tia incrível, que sente demais a sua falta, mas é uma mulher forte
e está seguindo com a vida. E deixou quatro filhos sensacionais, meus primos
amados. Ah, vou falar um pouco deles também.
Daniel, seu primeiro filho e o único sacudo,
está bem obrigado, no trabalho e na vida. Continua sendo o “Punk mais pão doce
de Curitiba”, como é chamado por suas amigas. É radical nas idéias e no
caráter e muito gentil no trato com as pessoas. Carolina e Clarissa, sua
gêmeas, são duas mulheres guerreiras. Carol na vida louca de São Paulo trabalha
muito e construiu uma família linda, com o Adriano e o Pedro. Ela esbanja
disposição para a vida. Clarissa, a pedagoga, apaixonada por crianças e que
apesar de ter escolhido o frio de Porto Alegre e o mala do Fábio (a quem
sabemos que você também amava) como marido, continua alegre, com aquele sorrisão. É muito esforçada e está se saindo uma mãe incrível para o seu neto
Miguel. E tem também a sua temporona, a caçula Marina, que se formou há pouco
tempo em jornalismo e já está trabalhando em São Paulo. Ela é inteligente,
linda e cheia de personalidade. Você se orgulharia do que ela se tornou. De
todos eles, aliás.
Vou parar por aqui, porque já escrevi
demais e porque nessa altura as lágrimas já estão me cegando. Mas, tio, pode continuar me
visitando. É bem vindo, como sempre foi, mas, sem trolagem, heim!
Pensei em publicar isso o mês que vem,
em homenagem aos 3 anos da sua partida. Mas aí pensei, esperar pra quê? Esse
papo é com o Betão e ele nunca gostou de esperar nada. Nem pra partir esperou,
foi cedo e rápido, como sempre saía das festas, de fininho ou soltando um
“vocês são tudo boa gente, mas eu vou é dormir”! E assim foi... Dormir!
Nenhum comentário:
Postar um comentário